O caso aconteceu em 1726, na Inglaterra, nas imediações da cidade de Guildford. Mary Toft, de vinte e cinco anos, intrigou o reino e os médicos ao parir algumas dezenas de coelhos.
Tudo começou no dia 27 de setembro daquele ano quando a senhora Toft entrou em trabalho de parto sendo assistida por sua mãe e por uma vizinha de nome Mary Gill. Foi o primeiro de uma série de nascidos extraordinários e a criatura parida era algo semelhante a um gato. Esse foi o primeiro relato apresentado pela família.
A família Toft, todos pobres, analfabetos e residentes no campo, mandou chamar John Howard, obstetra residente em Guildford, cidade próxima, a quem deu ciência do fato.
Ao chegar à casa dos Toft, o doutor Howard recebeu um pedaço de láparo parido recentemente. Sim, um pedaço, pois a mulher os paria aos pedaços. Por conta das fortes contrações que antecediam o nascimento, o feto saía cortado. Essa era a explicação para o fatiamento.
No dia seguinte, o médico recebeu mais pedaços de coelhos nascidos do ventre de Mary Toft, tendo ele participado dos trabalhos de parto de mais uma peça de leporídeo (!).
Ao longo dos dias seguintes, a mulher deu à luz cabeças de coelhos, pernas de gato e chegou até a produzir nove cabeças de coelhinhos. Todos mortos, evidentemente.
Na casa dos Tofts, havia vários frascos contendo pedaços de coelhos imersos em álcool.
Maravilhado com o acontecimento, o médico comunicou aos colegas, e à real corte, os sucessivos nascimentos milagrosos. A notícia percorreu o país e chegou ao conhecimento de George I, um alemão que não falava inglês, rei da Inglaterra.
O rei, que passava mais tempo em Hanover, onde nascera, do que em Londres, mandou duas pessoas para investigar o assunto: o doutor Nathanael St. Andre, cirurgião-anatomista a serviço do rei e Samuel Molyneux, secretário do príncipe de Gales e astrônomo.
Há quem diga que Nathaniel St. Andre não possuía nenhuma formação em medicina. Era um alemão, ou suíço, ambicioso e vivia atrás de situações através das quais pudesse se promover ou aparecer na mídia, como diriam hoje.
Os dois chegaram à casa da mulher no dia 15 de novembro na hora certa, pois ela encontrava-se em trabalho de parto e, logo em seguida, deu à luz o décimo quinto coelho da temporada. Ou pedaço de coelho.
Outra versão diz que o rei enviou à casa de Guildford o cirurgião alemão Cyriacus Ahlers e um amigo, Mr. Brand.
Ahlers não ficou totalmente convencido, mesmo após ver o "nascimento" de vários coelhos e comunicou a suspeita ao rei. |
Mary Toft deu a seguinte explicação aos visitantes: ela havia abortado recentemente e durante a gravidez ela tinha desejo - famosos desejos de mulher grávida - de comer carne de coelho.
Por mais que tentasse, ela não conseguia pegar os desejados coelhos e passou a sonhar com esses animais aninhados no colo dela. Daí em diante, ela passou a dar à luz coelhos. E muitos, tal qual uma coelha de verdade.
Essa é uma das versões, pois como em toda história desse tipo a quantidade de versões é bem maior do que a verdade.
Outra versão.
Em abril de 1726, Mary Toft estava no campo quando foi surpreendida por um coelho. Ela e uma amiga tentaram pegá-lo, mas não conseguiram. Nem esse nem outro coelho que passou por lá.
À noite, ela sonhou que estava na roça - versão brasileira :) - com dois coelhinhos no colo. Ao despertar, se sentiu adoentada e nos três meses seguintes ela sentia o desejo constante de comer coelho. Muito pobre, ela não tinha como comprar esses animais e os que apareciam não se deixavam pegar facilmente.
Aqui pra nós, você já tentou pegar, à mão, um coelho solto no campo? Não é fácil.
Nathanael St. Andre, cirurgião-anatomista do rei, atestou a veracidade da ocorrência e o príncipe mandou que a mulher fosse levada para Londres onde receberia o devido reconhecimento.
Em novembro de 1726, ela foi à capital do reino em busca de fama e fortuna como rezam os contos de fada.
Melhor ter ficado na roça.
O lugar onde o casal Joshua e Mary Toft se hospedou logo foi transformado em centro de atenções e ela passou a ser constantemente vigiada. Os nascimentos misteriosos começaram a rarear. De qualquer forma, a família Toft teve seus momentos de fama e de bem-aventurança.
Sir Richard Manningham, famoso obstetra de Londres, foi examinar Mary Toft. Pra quê? como diriam.
Ela apresentou ao médico uma bexiga de porco dizendo ser a placenta, como prova dos bizarros nascimentos. Ele estranhou a peça e, no dia seguinte, voltou trazendo outra bexiga de porco, igualzinha à mostrada pela mulher.
Foi o momento da revelação, ela debulhou-se em lágrimas e confessou a fraude.
Se ela continuasse a viver em Guildford, onde abundavam os coelhos, nada disso teria acontecido. Mas no centro de Londres, como conseguir a matéria prima, pelo menos um pedaço de coelho? Sem consegui-los, ela teve de pedir ao porteiro do prédio um pedaço de animal e ele só conseguiu a bexiga de porco.
Versão dois: Margaret Toft, cunhada de Mary, pediu ao porteiro para comprar o menor coelho que encontrasse. Na hora em que os dois - o coelhinho e o porteiro - entravam no quarto dela foram surpreendidos. Pressionado pelos doutores Douglas e Manningham o porteiro confessou a quem se destinava o contrabando.
Ao mesmo tempo, alguns pedaços dos coelhos paridos em Guildford foram levados para autópsia e nas tripas de uma das amostras os médicos encontraram cocô de coelho, do mesmo tipo encontrado nos demais leporídeos.
A armação fora descoberta.
Mesmo sob interrogatório dos médicos, Mary não admitiu a fraude até que o doutor Richard Manningham disse que faria uma cirurgia, bastante dolorosa, para saber se o interior da mulher era diferente das outras. Lembrando que o procedimento cirúrgico e a anestesia, naqueles tempos eram bem diferentes dos dias de hoje.
Sem saída, no dia 07 de dezembro de 1726, Mary confessou que introduzia os coelhinhos mortos na vagina e depois os retirava fingindo trabalho de parto.
Dois dias depois, 09 de dezembro, ela foi acusada formalmente e levada para a prisão de Bridewell.
A vida boa em Londres durou pouco mais de uma semana.
Por que a fraude demorou a ser descoberta?
A explicação dada pela senhora Toft se encaixava na ideia prevalecente na época de que a mulher grávida transmitia para o feto a experiência vivida no dia-a-dia. Impressão materna era o nome dado pelos médicos e explicava o nascimento de crianças com problemas genéticos.
Estímulos recebidos durante a gravidez eram repassados ao feto e, no caso de Mary Toft, a explicação era fácil: a fixação nos coelhos e a vontade de comê-los foram incorporadas ao feto só que, nesse caso, nasciam coelhos, e não bebês.
Elementar, meu caro Watson!
E por onde saíam os coelhinhos? Pelas vias naturais de nascimento. A mulher inseria pedaços de coelho na vagina e depois os retirava.
E não contraiu nenhuma infecção? Sim. Entre os dias 30 de novembro e 03 de dezembro, em Londres e sob observação médica, Mary Toft teve infecção e febre alta. Sorte de ela contar com a presença dos médicos que a investigavam. A partir daí, ela deixou de parir os coelhos.
End of story.
Cronologia.
Abril de 1726: Mary e uma amiga veem um coelho e tentam capturá-lo.
Agosto de 1726: Mary tem um aborto.
27 de setembro: nascimento dos primeiros espécimes.
15 de novembro: St. André e Molyneux chegam a Guildford.
21 de novembro: Ahlers comunica ao rei a suspeita de fraude.
29 de novembro: Mary Toft chega a Londres.
03 de dezembro: St. Andre divulga o artigo A Short Narrative of an Extraordinary Delivery of Rabbets.
07 de dezembro: Mary confessa a fraude.
09 de dezembro: Mary é formalmente acusada e presa.
Abril de 1727: Mary Toft sai da prisão.
13 de janeiro de 1763: morre Mary Toft, nascida em 1703.
A ocorrência serviu de mote para jornais ingleses que não viam com bons olhos a submissão a um rei alemão que não falava inglês. A presença dos médicos alemães, chamados de charlatões, foi duramente criticada.
William Hogarth (1697 - 1764), famoso gravador e pintor inglês, se encarregou de produzir gravuras, hoje cartuns, ridicularizando os alemães e as pessoas que acreditaram na farsa.